Entrevista Revista Proteção
ENTREVISTA PROTEÇÃO – Berenice I. F. Goelzer
Pergunta 1: Quais são os agentes químicos e físicos cancerígenos presentes no ambiente do trabalho? Quais tipos de câncer podem causar?
Resposta BG:
Existem muitos agentes cancerígenos e vários deles podem se encontrar em locais de trabalho. É importante enfatizar que esta é uma área onde pesquisas e estudos geram continuamente novos conhecimentos. Tal foi o caso do cloreto de vinila, que era considerado moderadamente tóxico até 1974, quando estudos de Maltoni o associaram com angiossarcoma do fígado, o que foi posteriormente confirmado por outros cientistas. Outro exemplo é o formaldeído, considerado não cancerígeno, depois, classificado como um suspeito e, em 2004, confirmado como cancerígeno. O amianto, reconhecidamente cancerígeno em todas as suas formas (actinolita, amosita, antofilita, crisotila, crocidolita, tremolita), era considerado como causador de câncer do pulmão e mesotelioma; recentemente foi declarado que pode causar também câncer da laringe e dos ovários.
Portanto é essencial que fontes confiáveis de informação sejam continuamente consultadas, por exemplo:
a nível internacional, a Agência Internacional para a Pesquisa sobre Câncer – IARC (http://www.iarc.fr/)
no Brasil, o Instituto Nacional de Câncer – INCA (http://www.inca.gov.br).
Informações confiáveis sobre este assunto estão também disponíveis em sites de institutos e agências nacionais em muitos países, por exemplo, o NIOSH (http://www.cdc.gov/niosh/) e a EPA (http://www.epa.gov/) nos Estados Unidos, o INCa (http://www.e-cancer.fr/) na França, o HSE na Inglaterra (http://www.hse.gov.uk/index.htm), entre muitos outros.
A IARC, sediada em Lyon (França), é um órgão da Organização Mundial da Saúde (OMS) e tem por missão coordenar e conduzir pesquisas (epidemiológicas e de laboratório) sobre as causas do câncer e os mecanismos da carcinogênese, e desenvolver estratégias para prevenção, bem como disseminar informação científica através de publicações, reuniões e cursos. Os resultados das investigações são publicados em monografias (“IARC Monographs on the Evaluation of Carcinogenic Risks to Humans”), sendo que a IARC classifica os agentes estudados nos seguintes grupos: Grupo 1 - Cancerígeno para humanos; Grupo 2A - Provavelmente cancerígeno para humanos; Grupo 2B - Possivelmente cancerígeno para humanos; Grupo 3 - Não classificáveis quanto à carcinogenicidade em humanos; Grupo 4 - Provavelmente não é cancerígeno para humanos. Estas monografias estão disponíveis na Internet (em PDF: http://monographs.iarc.fr/ENG/Monographs/PDFs/index.php). Um resumo importante de todos os estudos da IARC até agora, está na Monografia - Volume 100 “Uma Revisão dos Cancerígenos Humanos” (em breve disponível). Estas, bem como outras bases de dados sobre produtos químicos, estão também disponíveis gratuitamente no site da INCHEM (http://www.inchem.org/).
No Brasil, aconselho consultar o site do INCA e ler a publicação “Vigilância do Câncer Relacionado ao Trabalho e ao Ambiente” (2ª edição revista e atualizada, 2010), do Instituto Nacional de Câncer (disponível na Internet: http://www1.inca.gov.br/inca/Arquivos/PIV_poeira_2010.pdf).
Os estudos são difíceis, pois câncer é multifatorial, ou seja, depende de muitos fatores genéticos e ambientais (ar, água, alimentos, local de trabalho), e do estilo de vida. As estimativas da percentagem dos casos de câncer que são de origem ocupacional variam (segundo a OMS) de 5 a 25%, o que é na verdade um intervalo muito grande. O problema é que nem sempre é fácil o estabelecimento de nexo causal entre exposição ocupacional e câncer. Muitas vezes não restam dúvidas, por exemplo, angiosarcoma de fígado (um câncer raro) que aparece em trabalhador exposto a cloreto de vinila, ou mesotelioma, em trabalhador exposto a amianto; porém nem sempre o nexo é evidente.
Sabe-se que há muito subdiagnóstico de doenças ocupacionais em geral; além disso, no caso dos cancerígenos, geralmente a latência é muito longa; os danos podem aparecer muitos anos após a exposição. Por exemplo, na Inglaterra os casos de mesotelioma estão aumentando a cada dia, apesar da proibição do amianto há bastante tempo.
A seguir, alguns exemplos de agentes que são reconhecidamente cancerígenos humanos e que podem ocorrer em locais de trabalho.
Agentes físicos
Nesta categoria os principais exemplos são:
radiação ultravioleta, um problema para trabalhadores expostos ao sol sem proteção, como ocorre muito na agricultura, construção civil, trabalhos em estradas, etc. (câncer de pele)
radiações ionizantes, como raios X e emissões radioativas de materiais como, por exemplo, urânio. A tiróide e a medula óssea (leucemia) são particularmente sensíveis, mas estas radiações podem também causar outros tipos de câncer como, p.ex. de pulmão e pele (muito depende do tipo de exposição e condições individuais).
Um problema ambiental, inclusive em certos ambientes de trabalho (como minas profundas, serviços de saúde e laboratórios de pesquisa), é o risco do radônio. A Agência Norte-Americana de Proteção ao Meio Ambiente (US EPA) calcula que o radônio é a segunda causa de morte por câncer pulmonar nos Estados Unidos (precedido e seguido respectivamente por tabagismo e fumaça passiva).
Agentes químicos
Ao longo dos anos, a IARC tem estudado um grande número de agentes, sendo que até agora divulgou mais de 100 agentes, substâncias e misturas como comprovadamente cancerígenos para humanos, dos quais mais de 30 têm sido associados a câncer ocupacional.
Exemplos (não lista completa) de agentes cancerígenos que podem ser encontrados em ambientes de trabalho e que são listados pela IARC no Grupo 1 (comprovados): alcatrão da hulha, amianto, certas aminas aromáticas (p.ex., orto-toluidina e β-naftilamina), 4-aminodifenil, arsênico, benzeno, benzidina, benzo-α-pireno (um dos hidrocarbonetos policíclicos aromáticos - HPAs), berílio, 1,3-butadieno, cádmio, cloreto de vinila, cromo VI e cromatos hexavalentes (como cromatos de chumbo, cálcio, potássio e zinco; dicromato de amônia), éter bis-clorometílico, dioxina, formaldeído, fumaça de cigarro (fumante passivo), compostos de níquel, óleos minerais (não tratados ou pouco tratados), óxido de etileno, emissões de coquerias (benzeno, HPAs), nitrodifenil, pós de madeiras duras (como carvalho), sílica livre e cristalina.
Quanto aos efeitos para a saúde, podem causar câncer em diversos órgãos e sistemas, por exemplo: pulmão, pleura (mesotelioma), bexiga, medula (leucemia), nasofaringe, nariz, fígado, pele.
Pergunta 2. Como a OMS trabalha para prevenir a exposição aos cancerígenos nos ambientes de trabalho?
Resposta BG:
Quanto à pesquisa e avaliação de risco (“risk assessment”) no que se refere a cancerígenos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) atua através da IARC.
Além disso, a OMS tem um Plano de Ação Global de Luta contra o Câncer que inclui estratégias para prevenir, tratar e cuidar câncer, sempre enfatizando a prevenção, como em todos seus programas. Este Plano inclui estudos, coleta e disseminação de informação, educação e apoio a programas nacionais.
Em maio de 2005, a Assembléia Mundial da Saúde, em Genebra, aprovando a Resolução WHA 58.22 sobre Prevenção e Controle de Câncer, apelou para que os Estados Membros da OMS (entre outros itens) “dessem atenção especial para todos os tipos de câncer causados por exposições que podem ser prevenidas, particularmente exposições a produtos químicos e fumaça de cigarro nos locais de trabalho e no ambiente em geral, certos agentes infecciosos, e radiações solar e ionizantes”.
Em 2006, a OMS fez uma declaração comprometendo-se com a campanha mundial “Eliminação das Doenças Ligadas ao Amianto”, assim colaborando com a Organização Internacional do Trabalho (OIT) na implementação da Resolução sobre o Amianto adotada pela Conferência Internacional do Trabalho (OIT, 2006).
Conforme um comunicado de imprensa (2007) da OMS, promovendo a prevenção do câncer ocupacional através de ambientes de trabalho saudáveis, “cada ano, pelo menos 200000 pessoas morrem de câncer relacionado com seu trabalho. Milhões de trabalhadores no mundo correm o risco de ter câncer, por exemplo, câncer de pulmão ou mesotelioma por inalar fibras de amianto, câncer de pulmão devido à fumaça de cigarro (fumante passivo) ou leucemia devido à exposição a benzeno em seus locais de trabalho. E o risco de câncer ocupacional pode ser evitado. ... Presentemente, cerca de 125 milhões de pessoas em todo o mundo estão expostas ao amianto em seu trabalho, e pelo menos 90000 morrem cada ano devido a doenças relacionadas com amianto. Milhares morrem de leucemia causada por exposição a benzeno.”
Como muito bem disse Dra. Maria Neira, Diretora de Saúde Pública e Meio Ambiente na OMS, Genebra: "A tragédia do câncer ocupacional, como o que resulta da exposição a amianto, benzeno e outros agentes cancerígenos, é que leva tanto tempo para que as descobertas científicas sejam traduzidas em ações preventivas. Sabe-se que exposições conhecidas e preveníveis são responsáveis por centenas de milhares de casos de câncer cada ano. Para proteger nossa saúde, devemos adotar uma abordagem baseada na prevenção primária, ou seja, tornar os ambientes de trabalho livres de riscos cancerígenos.”
Ainda em 2007, a OMS preparou a série “Controle do Câncer - Conhecimento em Ação: Guia da OMS para Programas Eficientes”, com seis 6 módulos (inclusive sobre Prevenção), disponíveis
gratuitamente online no site da OMS.
gratuitamente online no site da OMS.
O Plano Global de Ação em Saúde do Trabalhador da OMS 2008–2017, executado em parceria com um grande número de centros colaboradores em todo o mundo, promove e enfatiza a prevenção primária da exposição a fatores de risco nos locais de trabalho, o que tem impacto direto na prevenção do câncer ocupacional. Atividades relacionadas com a campanha global para eliminação de doenças associadas com o amianto fazem parte deste plano.
É importante mencionar uma atividade pioneira: a “Conferência Internacional da OMS sobre Determinantes Ambientais e Ocupacionais de Câncer: Intervenções para Prevenção Primária”, a ser realizada em março 2011 em Astúrias, Espanha. Além de revisar políticas e intervenções para reduzir exposição ambiental e ocupacional a agentes cancerígenos, haverá uma "Apelo para Ação" quanto a fortalecer a prevenção de câncer ocupacional e ambiental dentro dos quadros de prevenção do câncer em geral.
Pergunta 3. Como deve ser um PPRA para contribuir à prevenção do câncer relacionado ao trabalho e à proteção do trabalhador?
Resposta BG:
Inicialmente gostaria de enfatizar que o PPRA, sendo um programa de prevenção de riscos, deve ser abrangente (existem muitos outros fatores de riscos gravíssimos além dos cancerígenos), multidisciplinar, eficiente e bem gerenciado, contínuo e sustentável. Ações preventivas isoladas não resolvem o problema. Não existe um modelo universal de PPRA; cada caso dever ser encarado como único.
O ideal é antecipar o risco, ou seja, evitar a utilização de produtos cancerígenos, já na fase de planejamento/seleção do processo de trabalho, equipamentos e materiais. Neste contexto, muitos países baniram ou restringiram severamente o uso de substâncias altamente tóxicas e/ou cancerígenas como, por exemplo, amianto, benzidina, benzeno, 4-aminodifenil, éter bis-clorometílico, β-naftilamina, cloreto de vinila.
Reconhecimento de risco: é essencial conhecer em detalhe todas as características do processo de trabalho e todos os agentes utilizados ou que podem ocorrer, bem como observar as condições de exposição. É importante estar sempre vigilante quanto à introdução de novos riscos. Sempre que houver alguma mudança de processo, expansão das atividades, introdução de novos materiais, etc., a situação de risco deve ser reavaliada.
Quanto aos efeitos, é importante ter acesso a fontes de informação confiáveis, como as supracitadas, pois conhecimentos nesta área estão sempre evoluindo. Muitas vezes as FISPQ disponíveis não são atualizadas como devem e levam a uma sensação de falsa segurança ou à adoção de medidas de controle insuficientes. Por exemplo, o 1,3-butadieno ainda está indicado em certas listas como cancerígeno provável, apesar de ter sido reconhecido pela IARC como comprovadamente cancerígeno (Grupo 1) em 2008.
Se e quando o Sistema Globalmente Harmonizado para a Classificação e Rotulagem de Produtos Químicos (GHS) estiver universalmente implementado, todas as FISPQ deverão ter indicações corretas e internacionalmente aceitas.
É importante estudar a possibilidade de ocorrência dos agentes cancerígenos em cada local de trabalho. Trabalhadores em ocupações as mais variadas podem estar expostos, por exemplo, na indústria química (corantes, tintas, borracha, plásticos, etc.) e farmacêutica, indústria do petróleo, indústria de ferro e aço, coquerias, agricultura, salões de beleza (cabeleireiros), hospitais (raios X, radioterapia, quimioterapia), usinas nucleares, laboratórios de pesquisa, certas minas, marcenarias (conforme a madeira), curtumes, produção de alumínio, construção civil, qualquer trabalho com amianto, trabalho em restaurantes/bares/boates (se não for proibido fumar), etc., etc.
Avaliação quantitativa do risco: no caso dos comprovadamente cancerígenos não existe um nível completamente seguro, visto que com qualquer exposição existe a probabilidade de efeito (câncer); o que varia com a magnitude da exposição é justamente esta probabilidade, não a severidade do dano. Câncer não é reversível com o afastamento da exposição como no caso de certas intoxicações. A meu ver, nem precisa medir; os recursos disponíveis devem ser utilizados para evitar a exposição.
Quando uma medição é feita para verificar se há presença de agente cancerígeno no ar, é importante que o método tenha sensibilidade suficiente, a fim de não levar a uma conclusão errônea de que não existe risco.
Para muitos agentes cancerígenos prováveis (Grupo IARC 2A), existem limites de exposição ocupacional, mas baixíssimos, portanto os métodos de avaliação devem ser altamente sensíveis, exatos e precisos, sendo em geral muito caros. Os procedimentos devem ser cuidadosamente realizados, com controle de qualidade rigoroso. Além das dificuldades de avaliação, também neste caso, o ideal é evitar a exposição e, portanto, problemas futuros, que muito provavelmente ocorrerão. Entre os agentes nesta categoria podemos citar, por exemplo: tricloroetileno, tetracloroetileno, brometo de vinila, fluoreto de vinila, benzo-α-antraceno, acrilamida.
Prevenção e controle: o ideal é evitar a presença de cancerígenos no local de trabalho através de medidas preventivas na fonte, tais como substituição por produtos não cancerígenos (e também não tóxicos) e mudança de processo (o que não dispensa cuidados preventivos). Se isto não for possível, devem ser utilizadas medidas de controle muito eficientes, tais como enclausuramento bem vedado da operação, com ventilação local exaustora incluindo coletores de alta eficiência (no caso de contaminantes atmosféricos). Toda e qualquer medida deve ser bem planejada por profissional competente, cuidadosamente operada e mantida.
Para certas operações, por exemplo, remoção de materiais contendo amianto, são necessários equipamentos especiais de proteção individual, que devem ser de alta qualidade, e utilizados e mantidos sob estrito controle.
A prevenção de câncer de pele resultante da exposição à radiação ultravioleta do sol inclui medidas como, por exemplo, proteger a pele com vestuário adequado (roupas, chapéus com proteção da nuca, etc.) e filtros solares, fornecer sombra e limitar a exposição escolhendo as horas do dia com menos raios danosos.
No caso de radiações ionizantes é necessário consultar especialista em proteção radiológica, para projetar/recomendar medidas como barreiras adequadas para isolar as fontes, proteção individual especial e uso de dosímetros.
Outras medidas importantes e indispensáveis num PPRA incluem: comunicação de risco, educação e treinamento, práticas de trabalho seguras e rigorosamente observadas, áreas restritas e boa sinalização, limpeza e destino adequado de resíduos. A proteção ambiental e das comunidades vizinhas deve também ser levada em consideração.
Comentários finais: A prevenção primária, ou seja evitar a exposição, é a abordagem mais importante. Exames para diagnóstico são essenciais, para fins de tratamento (particularmente a detecção precoce) e de compensação, porém não podem mudar o fato de que o trabalhador já tem câncer.
Os tomadores de decisão em vários níveis devem estar cientes de que o custo do câncer em sofrimento humano é incomensurável, e em termos econômicos, imenso. É muito melhor e mais humano gastar em prevenção do que em tratamento.